quinta-feira, 28 de abril de 2016

Os fogos de Paraty

Capítulo I

Paraty é o meu refúgio. Gosto particularmente da cidade velha, feita de luzes, sombras, memórias e olvido. Lá, eu passo as madrugadas; apenas eu e minha câmera. Quando regresso ao Rio, trato as fotos e não raro surge a ideia de mais uma exposição.

Foi em uma dessas viagens que presenciei a procissão dos fogos. Era sexta-feira santa, pouco antes de meia-noite. Em frente à secular Matriz, os fiéis aguardavam. Pude ver os coroinhas distribuindo as tochas, ainda apagadas, aleatoriamente para os integrantes da pequena multidão. A cidade era sombria, mas as luzes dos bares e botecos das ruas próximas ainda resistiam.

A matraca então tocou, uma e outra vez, expulsando aquela claridade indesejada e convocando a escuridão. Os outros coroinhas apressavam-se em acender as tochas. Não sei ao certo quanto tempo se passou até que todos os comerciantes extinguissem suas luzes elétricas. Porém, quando a última lâmpada se apagou, a catraca ressoou aguda e metálica pela última vez.

Os fogos de Paraty ardiam contra o breu. Saiu da igreja o imenso Cristo de madeira sobre um suporte aveludado, apoiado pesadamente sobre os ombros de quatro coroinhas. Cristo olhava para baixo, mas não para nós; seu olhar se perdia na antecipação do próprio suplício. Um galho de oliveira repousava entre suas mãos reflexivas e perturbadas. O condenado se encontrava vestido de túnica branca, com uma única faixa roxa a atravessá-la; aquele traje era a única alusão à transcendência. Todo o resto – olhos, mãos, ombros curvados – era de um homem torturado.

Ali estávamos todos no século XIX. Cuidadosamente, eu fotografava os fiéis e suas tochas. Os fogos avançavam fluidamente pelas ruas antigas, as pedras brilhavam suavemente.

No momento em que os últimos andarilhos da cauda da procissão passavam pela Rua Santa Rita, poucos segundos depois da última foto do trecho, pelo canto do olho, vi uma tocha se acender. Me virei apenas para perceber uma tocha abandonada ardendo no chão perto do casarão.

Havia algo estranho naquilo. Não era o fato de que a construção (um enorme sobrado) era centenária; todo o centro de Paraty é histórico. Era aquela tocha ali, ardendo brilhante demais e, no entanto, deixada no chão, sem o mais leve vestígio de quem a tivesse acendido.

Cuidadosamente, peguei a tocha, que não poderia ficar ali, e continuei a seguir a procissão. Demorei a perceber que estava sentindo medo. Não era o medo latente com o qual eu aprendi a conviver ao longo dos anos, o de uma mulher sozinha à noite fotografando ruas escuras e semidesertas durante a madrugada. Era o medo de quem sentia próximo uma segunda presença, sem no entanto poder discerni-la.

Olhei em volta: ninguém. A procissão já estava longe; os fiéis rezavam uma ladainha em um dos pontos de parada. Aproximei-me deles, tocha na mão, bem a tempo de escutar o padre recitar o último verso de uma oração. A matraca soou, aguda e metálica, ao mesmo tempo em que eu escutava alguns sussurros indistintos.

Eu pulei para trás, a tocha brilhante iluminando um grande vazio. Os fiéis retomaram a caminhada, inabalados. Enquanto eu tentava ser objetiva, os sussurros continuavam. Era a minha memória reproduzindo os mesmos sons? Ou uma alucinação?

Quando dei por mim, eu estava retornando ao sobrado da Santa Rita. Deixaria a tocha no mesmo lugar em que a havia encontrado, e encerraria a noite. Os sussurros haviam parado, isso era bom, tudo ficaria bem. Eu só precisava devolver a tocha.

Onde estava a tocha?

Pavor. O único objeto que eu trazia comigo era a minha câmera. A tocha havia desaparecido sem que eu ao menos percebesse. 



-- O segundo capítulo do conto será publicado na próxima semana. 
-- Todo conteúdo desse blog pode ser reproduzido, desde que o texto em questão seja reproduzido na íntegra, não seja usado comercialmente e que os créditos sejam atribuídos a mim, Isabela Escher Rebelo.

terça-feira, 5 de abril de 2016

Dissonância

Tranco as janelas da alma
com as memórias de dores
cíclicas.

Atravesso estações inteiras
me tornando fictícia.

Minha carne então rebenta
em dores latejantes.
Pulsam no ritmo vulgar
da obsessão de um instante.

Em rastros de pensamentos,
esvaeço.
Ardo em gritos errantes
que nem eu mesma escuto.
As minhas fibras se partem
no compasso penitente
de um autoflagelo agudo.

Eu sangro
nestes versos roucos,
escorregando para a boca úmida
que se fecha
pouco a pouco.


Escrevi esse poema após um episódio de depressão e ansiedade. Literatura não é apenas Arte; é também o meio que encontrei para me comunicar comigo mesma. Busco me conhecer por meio dos meus versos. Acredito, assim, que a Arte seja terapêutica.

Essa observação não invalida qualquer outra interpretação possível do poema "Dissonância". A minha intenção foi somente registrar a minha própria percepção e, mais do que isso, encorajar outras pessoas que sofrem de distúrbios psiquiátricos a recorrerem a todas as formas de Arte em sua recuperação. 

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sexta-feira, 1 de abril de 2016

Crônicas da terra perdida


Havia uma terra onde os habitantes não tinham memória. Tudo ali se passava como em um sonho: os eventos eram sempre fluidos e inexplicáveis, mas inevitavelmente pareciam lógicos às pessoas. Era um povo curioso que desconhecia as próprias leis e músicas, alérgico a museus e recordações de qualquer tipo. Assim, não era surpresa que eles aceitassem toda aquela falta de sentido cotidiana.

Os cidadãos daquela terra gostavam de se portar como guardiões do senso crítico, tentando a todo custo convencer o interlocutor divergente de que era este, e não aqueles, quem não tinha noção do ridículo. Citavam comentários publicados em sites de entretenimento social, sem fontes e com várias falácias, como se fossem análises científicas. Alguns até mesmo inspiravam-se pelo exemplo proeminente de um intelectual cujo único feito havia sido concluir o ensino médio, bem como o de um economista que, em vez de se empenhar em resolver a entediante crise econômica do lugar, preferia escrever longamente sobre questões sociais e políticas sobre as quais não tinha nenhum conhecimento.

Nas minhas entrevistas, alguns até começavam em tom condescendente. Porém, todos, em algum ponto, explodiam e passavam a me ofender: eu era cúmplice de crimes apenas por ter dado o benefício da dúvida, ou por ter defendido um conjunto de normas nacionais que, apesar de viger, já estava em desuso. Minha roupa vermelha era a comprovação definitiva de que eu merecia um linchamento.

O mais triste era saber que a perda de memória era tão profunda, que mesmo heróis do passado se convertiam naquilo que antes haviam rejeitado. Para eles, era fácil esquecer os ideais de liberdade e justiça social, negociados em troca de riqueza e de permanência no poder.

Entretanto, alguns se recusavam a perder a memória. Transmitiam repetidamente aos demais todas as histórias, inclusive as ainda sem fim. Eram temidos, e não demorou até que os vários governos daquela terra superassem momentaneamente seu ódio mútuo a fim de que o ato de contar histórias fosse denominado terrorismo.

Foi então que fugi da minha terra. Sem passado e sem presente, sem sentidos e sem direções, ela continua à deriva. Otra cerveza, por favor.  

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