segunda-feira, 16 de maio de 2016

Casa de bonecas


Encontraram-me dormindo
sob os destroços 
de mim mesma.
No rosto: uma aquarela
de cores indesejadas.
No olhar, a delicadeza
que mutilava a minha alma.
Fiz de lençóis desarrumados
a minha mortalha diária. 
Fui sumariamente condenada:
eu já não cabia
em prateleiras.


-- Todo conteúdo desse blog pode ser reproduzido, desde que o texto em questão seja reproduzido na íntegra, não seja usado comercialmente e que os créditos sejam atribuídos a mim, Isabela Escher Rebelo (Isabela Escher).



quinta-feira, 12 de maio de 2016

Os fogos de Paraty: Capítulo III

(Confira o capítulo I clicando aqui e leia o capítulo II aqui).


Capítulo III

O cão se aproximava em passos implacáveis. Não possuía olhos; todavia, ele me avaliava, sopesando que tipo de ameaça eu representava àquela casa.

Recuei. Primeiro, um passo; depois, outro. Não conseguia desviar o meu olhar daquela criatura, ainda que eu estivesse amedrontada. Que animal impossível era aquele?

O cão somente parou de caminhar quando eu já havia recuado vários metros. A rua acidentada e escura me impedia de andar mais rápido, ainda mais de costas. Assim, ao fim de alguns minutos, nós ficamos imóveis, medindo um ao outro.

Foi quando ele uivou; um uivo agudo, uma mistura entre um aviso e um lamento, alto e penetrante. Nenhum outro animal poderia uivar daquele modo que mais se assemelhava a um grito.

 Toda a cautela e todo o fascínio me abandonaram. Virei e corri em direção ao cais, apertando a câmera com força em minhas mãos, me concentrando completamente no barulho das ondas da baía adiante e olhando apenas para as pedras irregulares sob os meus pés.

Apenas após a rua ter terminado e eu haver chegado ao gramado que se estendia até o início do porto, percebi uma dor ardente em um dos meus calcanhares. Mesmo assim, não diminuí o ritmo até conseguir chegar a uma fileira de carros estacionados.

Não havia ninguém ali. A escuridão absoluta não me permitia sequer enxergar a enseada; somente escutá-la.

Quando virei a minha câmera para o fim da Santa Rita, o flash iluminou o vazio. Oprimida por aquela ausência de movimentação, liguei para a minha esposa e pedi que viesse me resgatar.


Após algumas horas de sono agitado, acordei decidida a retornar ao sobrado para descobrir o que estava acontecendo. Já não possuía mais dúvidas de que todo o episódio se encontrava permeado pelo sobrenatural. Porém, ainda precisava saber os motivos: por que aquela tocha havia surgido e sumido das minhas mãos? Por que eu havia escutado aqueles sussurros? Por que, quando tinha me aproximado para fotografar melhor a casa, uma força havia me afastado de lá? E, finalmente, que aparição era aquele cão imenso sem olhos?

Sentia que o casarão desejava algo de mim. Não podia deixar de pensar que a tocha encontrada perto do sobrado tinha um propósito, bem como que os murmúrios queriam me dizer alguma coisa.

Portanto, a despeito dos conselhos da minha esposa – “você já não tem uma história boa o suficiente para contar?” –, resolvi voltar ao mesmo lugar.

Eram seis da tarde quando eu, com a minha câmera, cheguei ao casarão. A rua se encontrava cheia de turistas alheios. Naquele momento, não esperava obter uma resposta; isso apenas viria (se viesse) depois que todos houvessem partido.

Após armar o tripé e posicionar a câmera em frente ao sobrado, fiquei perplexa. As paredes, antes sujas e machucadas, estavam limpas e lisas. As pedras desgastadas entre as fachadas agora se encontravam como novas. O mais marcante, contudo, eram as portas e janelas: a madeira, anteriormente velha, brilhava, e as tábuas exteriores que as vedavam haviam desaparecido.

Eu precisava de uma bebida. 



-- O quarto capítulo do conto será publicado na próxima semana.

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terça-feira, 10 de maio de 2016

Anatomia


O vigor das tuas pernas me prendia.
Aquele vermelho tão tímido
espiava entre os teus lábios,
me desafiando a abri-los
para que tingisse a minha boca.

Meu rosto tocou
a escuridão de teus pêlos
se espraiando em penumbra sobre a tua pele.
Em minha língua,
o cheiro ardente de teus segredos semiocultos
prenunciava o sal de teus gemidos
a se agitar.

Eu revelava as tuas linhas pouco a pouco
enquanto tu pulsavas no teu ritmo.
O teu volume tangia a abertura
daquilo que em mim é mais profundo.
A tua voz confundiu-se ao meu silêncio
no instante sem nome do sublime.

-- Todo conteúdo desse blog pode ser reproduzido, desde que o texto em questão seja reproduzido na íntegra, não seja usado comercialmente e que os créditos sejam atribuídos a mim, Isabela Escher Rebelo (Isabela Escher).

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Os fogos de Paraty: Capítulo II

(Na semana passada, publiquei o primeiro capítulo do meu conto-folhetim: leia-o aqui. Segue abaixo o segundo capítulo)


Capítulo II

Respirando profundamente, eu tentava raciocinar em meio à escuridão. Liguei o flash da câmera, que se estendeu sem oposição por vários metros.

Eu estava sozinha quase em frente ao sobrado. As ladainhas da procissão se perdiam na distância. Era um esforço manter o meu senso de direção naquela cidade tão familiar.

Entretanto, eu podia sentir algo fora do lugar. Movida por uma obsessão mais forte do que o medo, comecei a fotografar o casarão de cada ângulo.

Era difícil explicar: ao mesmo tempo em que sentia um pavor intenso e prestava atenção em cada elemento, eu me encontrava distante de mim mesma. Uma estranha sensação de reconhecimento começou a se formar em mim, progressivamente mais forte e, ainda assim, indefinível.  

Fotografava a construção: paredes machucadas e sujas, pedras desgastadas entre as fachadas lateral e frontal e, sobretudo, velhas portas e janelas cerradas com tábuas pregadas no exterior. Por que alguém teria assumido aquele trabalho tão pouco estético em uma cidade ávida por conservar suas lembranças da colônia e do Império? Na verdade, todo o estado de deterioração daquele sobrado era um elemento paradoxal em Paraty.

A procissão havia por fim se afastado. Não se ouviam mais as reverberações dos cantos e das rezas. O silêncio era absoluto. Até o ar escaldante estava imóvel. Minhas mãos começaram a tremer; sentia que havia invadido um espaço cujos segredos não eram meus.

Tentei voltar à racionalidade. O desaparecimento da tocha, ainda que estranho, podia ser explicado: às vezes, as pessoas largam objetos sem perceber, não? Talvez fosse esse o caso; fazia sentido, pois a tocha havia sumido após eu escutar aqueles sussurros, quando o meu medo se intensificara. Os próprios murmúrios poderiam ter ocorrido devido a algum efeito incomum de acústica na cidade antiga. E eu não acreditava em espaços proibidos.

Um pouco mais calma, me aproximei ainda mais do casarão, para fotografá-lo melhor. Afinal, eu não estava convencida completamente da normalidade da situação, e o sentimento de que ali havia algo errado permanecia.

Jamais consegui tirar aquela foto. Enquanto arrumava o foco da lente, fui lançada para trás com tal força, que fiquei temporariamente sem ar, e quase caí.

Apenas a escuridão me cercava. Porém, antes que eu pudesse pensar em esboçar qualquer reação, surgiu, por detrás do sobrado, o maior cão que eu já vira: um amontoado de músculos e pêlos com mais de um metro e meio de altura. Quando direcionei o flash da câmera para iluminá-lo, pude ver que o animal não tinha olhos. Entretanto, isso não o impediu de caminhar lentamente na minha direção. 



-- O terceiro capítulo do conto será publicado na próxima semana. 

-- Todo conteúdo desse blog pode ser reproduzido, desde que o texto em questão seja reproduzido na íntegra, não seja usado comercialmente e que os créditos sejam atribuídos a mim, Isabela Escher Rebelo.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Pausa

Enquanto tu me seguras,
eu te respiro:
pele, suor e pêlos na penumbra,
olhos fechados, músculos estendidos...
Respiro a falta de perguntas
e de nomes.
O futuro foi embora, intimidado,
diante da paz cadente
que funde o teu corpo
aos meus sentidos.

-- Todo conteúdo desse blog pode ser reproduzido, desde que o texto em questão seja reproduzido na íntegra, não seja usado comercialmente e que os créditos sejam atribuídos a mim, Isabela Escher Rebelo (Isabela Escher).
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/