Havia uma terra onde os habitantes não
tinham memória. Tudo ali se passava como em um sonho: os eventos eram sempre
fluidos e inexplicáveis, mas inevitavelmente pareciam lógicos às pessoas. Era
um povo curioso que desconhecia as próprias leis e músicas, alérgico a museus e
recordações de qualquer tipo. Assim, não era surpresa que eles aceitassem toda
aquela falta de sentido cotidiana.
Os cidadãos daquela terra gostavam de se
portar como guardiões do senso crítico, tentando a todo custo convencer o
interlocutor divergente de que era este, e não aqueles, quem não tinha noção do
ridículo. Citavam comentários publicados em sites de entretenimento social, sem
fontes e com várias falácias, como se fossem análises científicas. Alguns até
mesmo inspiravam-se pelo exemplo proeminente de um intelectual cujo único feito
havia sido concluir o ensino médio, bem como o de um economista que, em vez de
se empenhar em resolver a entediante crise econômica do lugar, preferia
escrever longamente sobre questões sociais e políticas sobre as quais não tinha
nenhum conhecimento.
Nas minhas entrevistas, alguns até
começavam em tom condescendente. Porém, todos, em algum ponto, explodiam e
passavam a me ofender: eu era cúmplice de crimes apenas por ter dado o benefício
da dúvida, ou por ter defendido um conjunto de normas nacionais que, apesar de
viger, já estava em desuso. Minha roupa vermelha era a comprovação definitiva de
que eu merecia um linchamento.
O mais triste era saber que a perda de
memória era tão profunda, que mesmo heróis do passado se convertiam naquilo que
antes haviam rejeitado. Para eles, era fácil esquecer os ideais de liberdade e
justiça social, negociados em troca de riqueza e de permanência no poder.
Entretanto, alguns se recusavam a perder
a memória. Transmitiam repetidamente aos demais todas as histórias, inclusive as
ainda sem fim. Eram temidos, e não demorou até que os vários governos daquela
terra superassem momentaneamente seu ódio mútuo a fim de que o ato de contar
histórias fosse denominado terrorismo.
Foi então que fugi da minha terra. Sem
passado e sem presente, sem sentidos e sem direções, ela continua à deriva. Otra cerveza, por favor.
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