sexta-feira, 1 de abril de 2016

Crônicas da terra perdida


Havia uma terra onde os habitantes não tinham memória. Tudo ali se passava como em um sonho: os eventos eram sempre fluidos e inexplicáveis, mas inevitavelmente pareciam lógicos às pessoas. Era um povo curioso que desconhecia as próprias leis e músicas, alérgico a museus e recordações de qualquer tipo. Assim, não era surpresa que eles aceitassem toda aquela falta de sentido cotidiana.

Os cidadãos daquela terra gostavam de se portar como guardiões do senso crítico, tentando a todo custo convencer o interlocutor divergente de que era este, e não aqueles, quem não tinha noção do ridículo. Citavam comentários publicados em sites de entretenimento social, sem fontes e com várias falácias, como se fossem análises científicas. Alguns até mesmo inspiravam-se pelo exemplo proeminente de um intelectual cujo único feito havia sido concluir o ensino médio, bem como o de um economista que, em vez de se empenhar em resolver a entediante crise econômica do lugar, preferia escrever longamente sobre questões sociais e políticas sobre as quais não tinha nenhum conhecimento.

Nas minhas entrevistas, alguns até começavam em tom condescendente. Porém, todos, em algum ponto, explodiam e passavam a me ofender: eu era cúmplice de crimes apenas por ter dado o benefício da dúvida, ou por ter defendido um conjunto de normas nacionais que, apesar de viger, já estava em desuso. Minha roupa vermelha era a comprovação definitiva de que eu merecia um linchamento.

O mais triste era saber que a perda de memória era tão profunda, que mesmo heróis do passado se convertiam naquilo que antes haviam rejeitado. Para eles, era fácil esquecer os ideais de liberdade e justiça social, negociados em troca de riqueza e de permanência no poder.

Entretanto, alguns se recusavam a perder a memória. Transmitiam repetidamente aos demais todas as histórias, inclusive as ainda sem fim. Eram temidos, e não demorou até que os vários governos daquela terra superassem momentaneamente seu ódio mútuo a fim de que o ato de contar histórias fosse denominado terrorismo.

Foi então que fugi da minha terra. Sem passado e sem presente, sem sentidos e sem direções, ela continua à deriva. Otra cerveza, por favor.  

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