quinta-feira, 5 de maio de 2016

Os fogos de Paraty: Capítulo II

(Na semana passada, publiquei o primeiro capítulo do meu conto-folhetim: leia-o aqui. Segue abaixo o segundo capítulo)


Capítulo II

Respirando profundamente, eu tentava raciocinar em meio à escuridão. Liguei o flash da câmera, que se estendeu sem oposição por vários metros.

Eu estava sozinha quase em frente ao sobrado. As ladainhas da procissão se perdiam na distância. Era um esforço manter o meu senso de direção naquela cidade tão familiar.

Entretanto, eu podia sentir algo fora do lugar. Movida por uma obsessão mais forte do que o medo, comecei a fotografar o casarão de cada ângulo.

Era difícil explicar: ao mesmo tempo em que sentia um pavor intenso e prestava atenção em cada elemento, eu me encontrava distante de mim mesma. Uma estranha sensação de reconhecimento começou a se formar em mim, progressivamente mais forte e, ainda assim, indefinível.  

Fotografava a construção: paredes machucadas e sujas, pedras desgastadas entre as fachadas lateral e frontal e, sobretudo, velhas portas e janelas cerradas com tábuas pregadas no exterior. Por que alguém teria assumido aquele trabalho tão pouco estético em uma cidade ávida por conservar suas lembranças da colônia e do Império? Na verdade, todo o estado de deterioração daquele sobrado era um elemento paradoxal em Paraty.

A procissão havia por fim se afastado. Não se ouviam mais as reverberações dos cantos e das rezas. O silêncio era absoluto. Até o ar escaldante estava imóvel. Minhas mãos começaram a tremer; sentia que havia invadido um espaço cujos segredos não eram meus.

Tentei voltar à racionalidade. O desaparecimento da tocha, ainda que estranho, podia ser explicado: às vezes, as pessoas largam objetos sem perceber, não? Talvez fosse esse o caso; fazia sentido, pois a tocha havia sumido após eu escutar aqueles sussurros, quando o meu medo se intensificara. Os próprios murmúrios poderiam ter ocorrido devido a algum efeito incomum de acústica na cidade antiga. E eu não acreditava em espaços proibidos.

Um pouco mais calma, me aproximei ainda mais do casarão, para fotografá-lo melhor. Afinal, eu não estava convencida completamente da normalidade da situação, e o sentimento de que ali havia algo errado permanecia.

Jamais consegui tirar aquela foto. Enquanto arrumava o foco da lente, fui lançada para trás com tal força, que fiquei temporariamente sem ar, e quase caí.

Apenas a escuridão me cercava. Porém, antes que eu pudesse pensar em esboçar qualquer reação, surgiu, por detrás do sobrado, o maior cão que eu já vira: um amontoado de músculos e pêlos com mais de um metro e meio de altura. Quando direcionei o flash da câmera para iluminá-lo, pude ver que o animal não tinha olhos. Entretanto, isso não o impediu de caminhar lentamente na minha direção. 



-- O terceiro capítulo do conto será publicado na próxima semana. 

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